Como analisar trechos

  • No segundo capítulo de Para ler como um escritor intitulado: Palavras, a autora Francine Prose analisa alguns trechos.

    Podemos dar por certo que, se a obra de um escritor sobreviveu ao longo de séculos, há razões para isso. Parte do papel do leitor é descobrir por que certos escritores permanecem.

    Para isso é essencial desacelerar e ler cada palavra.

    Uma maneira de nos obrigarmos a desacelerar e parar a cada palavra é perguntar se que tipo de informação cada – cada escolha de palavra transmite.

    Leiam esse primeiro parágrafo do conto Um homem bom é difícil de encontrar, da Flannery O’Connor:

    “A avó não queria ir para a Flórida. Queria visitar alguns de seus contatos no leste do Tennesse e agarrava-se a todas as chances para fazer Bailey mudar de ideia. Bailey era o filho com que morava, seu único menino. Ele estava sentado na ponta de sua cadeira à mesa, curvado sobre a seção esportiva laranja do Journal.

    “Ora, olhe aqui, Bailey”, disse ela,”

    “veja aqui, leia isto”, e parou, uma mão nas cadeiras magras e a outra sacudindo o jornal junto à cabeça calva dele.

    “Esse sujeito aqui que chama a si próprio de Desajustado fugiu da Penitenciária Federal e tomou o rumo da Flórida, e leia aqui o que ele diz que fez com essas pessoas. Dê uma só lida nisto. Eu não levaria meus filhos a parte alguma com um criminoso como essa tresmalhado por lá. Não ficaria em paz com a minha consciência.”

    Um homem bom é difícil de encontrar, de Flannery O’Connor

    No trecho acima, temos uma primeira frase declarativa, simples e direta. Não há adjetivo ou advérbio para nos distrair da informação central.

    Há outra coisa importante que podemos observar: a forma como os escritores vão chamar os seus personagens é uma escolha, certo?

    “A avo”. Porque não “vovó”? Ou “A Sr. Smith” (utilizando um sobrenome hipotético)?

    Vovó estabeleceria um grau diferente de simpatia entre o leitor e a velha senhora, concordam?

    A nora é chamada de “a mãe das crianças”, o que também impede que fiquemos íntimos dessa mulher.

    Em Vidas Secas de Graciliano Ramos, os filhos são chamados de o menino mais velho e o menino mais novo.

    Há um objetivo nessa escolha do autor.

    Outro ponto a considerar. A primeira frase é uma negação. Pela própria simplicidade pretende enfatizar e deixar bem nítida a força com que a avó está resistindo.

    Assim como a primeira frase de Moby Dick, “Chame-me Ishmael” – nos faz sentir que o autor está no controle, uma autoridade que nos arrasta diante da história.

    A primeira parte da segunda frase – “Queria visitar alguns de seus contatos no leste do Tennesse” – nos situa na geografia.

    Há uma palavra interessante, “contatos”. Não parentes, familiares, amigos, mas “contatos”.

    A segunda metade da frase – “agarrava-se a todas as chances para fazer Bailey mudar de ¡deia” – fortalece uma ideia, agarrar não é “aproveitar todas as chances”, por exemplo, e mostra a veemência da avó.

    As frases finais do parágrafo – “Eu não levaria meus filhos a parte alguma com um criminoso como esse tresmalhado por lá.

    Não ficaria em paz com a minha consciência se levasse” – demonstra a qualidade cômica (e enlouquecedora) das manipulações da avó.

    Ela usará qualquer coisa, até mesmo um encontro imaginário com um criminoso foragido, para desviar as férias da família da Flórida para o leste do Tenesse.

    Para quem se interessar em ler o conto, vou deixar um fio aqui:

    Se no primeiro ato você colocar uma pistola na parede, no seguinte ela deve ser disparada. Em outro caso não a coloque lá.

    Anton Tchekhov

    Apenas passar os olhos não basta se desejamos alcançar o que as palavras de um escritor podem nos ensinar sobre como usar a linguagem.Se ler rapidamente – voltado para a trama, para as ideias, e até para as verdades psicológicas que uma história revela – pode ser um empecilho quando as revelações cruciais estão nos espaços ENTRE as palavras.

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    Os grandes escritores não fazem escolhas aleatórias. Qualquer biografia que a gente leia vai salientar o trabalho intenso dedicado à lapidação de frases e de parágrafos.

    Dickens menciona em seu diário a exaustão após horas escrevendo uma determinada cena de A velha Loja de curiosidades.

    Tolstói produziu 10 versões da primeira parte de Anna Kariênina, 2.500 páginas manuscritas, antes que o romance fosse concluído.

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